segunda-feira, 28 de junho de 2010

Do que não foi

O que não vivemos pode ficar dentro, algo torto, meio morto, como um espinho que a pele não rejeita, cobre de tecido e, com o tempo, a gente nem sente mais. Pode ficar lá silente e imóvel, jóia perdida no mar enterrada na areia, de resgate impossível. Pode ser esquecido poema escrito em um caderno em desuso, metido no fundo de uma caixa qualquer. Pode se tornar inerte e seco, rosa prensada dentro de um livro, ameaça inócua e longínqua. E podemos não lembrar mais, e já não doer mais, e já não incomodar mais, e já não vir seu nome visitar a língua. Podemos não calçar mais seus sapatos e nossos dias podem deixar de ser sombras dos seus sóis. Até que alguma onda revolve a terra e traz à praia aquele tesouro, até o dia que a pele inflama e o espinho coloca a ponta para fora, até o dia em que um poema, uma música ou a vida, por qualquer crueldade dessas em que ela é especialista, nos segura pelos ombros e nos cospe nos rosto. Então nos surpreendemos com o quanto conseguimos nos enganar e por quanto tempo.

 Isadora Calderaro Soares


segunda-feira, 14 de junho de 2010

Conspiração

Eu realmente acredito piamente que, em algum lugar desse universo, deve haver uma conspiração quântica para fazer com que aquelas coisas desaparecidas há muito, mas muito tempo mesmo, reapareçam cruelmente em um determinado momento, simplesmente do nada, em lugares que a gente mexeu todos os dias nos últimos anos e nunca estiveram lá, com a mais absoluta certeza. Mas aí um belo dia sabe-se lá porquê (aqui deve entrar uma equação tão cheia de variáveis que seria necessário um supercomputador que faria os da previsão meteorológica parecerem relógios-calculadora) reaparecem, plim, para nos dar um enorme murro no meio da cara. Just like that. Então primeiro a gente sente o sangue nos fugir das faces e das mãos e direcionar-se T.O.D.O para o estômago. Faltam forças, falta chão, falta profundidade em tudo que nos cerca, o mundo vai ficando progressivamente monocromático e contrastante até aquele ponto que antecede o desmaio. Aí, se a gente for forte o suficiente, consegue achar entre as coisas que se movem como se derretessem tal como uma tela do Dalí, um lugar para sentar e evitar se esborrachar no chão feito um saco de batatas. Feito isso, a cabeça está girando, mas só a parte de dentro dela. A gente tenta obter um referencialzinho que seja e tudo na volta desaparece. Só AQUILO existe. Aquilo e tudo que aquilo trouxe de volta, como se aberto estivesse um ralo para outra dimensão do tempo e do espaço que acaba de lhe sugar pra dentro. E então você está lá, de volta lá, naquele dia, naquela hora que você julgava perdidos para sempre, com aquela luz e aqueles cheiros, com os rostos das pessoas vívidos e perfeitos, as vozes claras, você de volta naquele seu corpo, dentro daquela roupa, daqueles sapatos, ostentando aquele sorriso que não doía, de posse daqueles olhos brilhantes cheios de inocência imbecil, com o peito rebentando de felicidade e certezas tão absolutas quanto cegas, coisas essas que você só saberia muito mais tarde, muito mais tarde, quando numa tarde de sol você abrisse uma gaveta que você tinha aberto incólume todos os dias até então e encontrasse aquele pequeno pedaço de você. Perdido. Para sempre.



Isadora Calderaro Soares




P.S: O quadro do início do texto é Persistência, de Dalí *-*

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sem meio termo

Não se vive aos cadinhos. Não se esmola vida. Não se pede licença para existir. Não se existe de favor. Viver é se apoderar dos instantes, copular com os dias, apossar-se do estar sendo, empenhar-se no mundo dos sentidos, do agora. Viver é se rasgar por dentro, deixar-se arranhar pelos cílios do medo, vibrar na alta frequência do desmedido, enfiar a língua entre os dentes da insanidade, parir-se ao contrário todas as manhãs. Viver não é um exercício de preservação, mas de flagelo. Não há resguardo possível àqueles que estão vivos, nem prudência, nem moderação. Vida é o caminho que se faz todos os dias entre a loucura e a sanidade. E estar vivo é não ter medo de se perder nesse percurso. 
Isadora Calderaro Soares 



P.S: A gravura do post é Liberdade, do Picasso. :D