segunda-feira, 28 de junho de 2010

Do que não foi

O que não vivemos pode ficar dentro, algo torto, meio morto, como um espinho que a pele não rejeita, cobre de tecido e, com o tempo, a gente nem sente mais. Pode ficar lá silente e imóvel, jóia perdida no mar enterrada na areia, de resgate impossível. Pode ser esquecido poema escrito em um caderno em desuso, metido no fundo de uma caixa qualquer. Pode se tornar inerte e seco, rosa prensada dentro de um livro, ameaça inócua e longínqua. E podemos não lembrar mais, e já não doer mais, e já não incomodar mais, e já não vir seu nome visitar a língua. Podemos não calçar mais seus sapatos e nossos dias podem deixar de ser sombras dos seus sóis. Até que alguma onda revolve a terra e traz à praia aquele tesouro, até o dia que a pele inflama e o espinho coloca a ponta para fora, até o dia em que um poema, uma música ou a vida, por qualquer crueldade dessas em que ela é especialista, nos segura pelos ombros e nos cospe nos rosto. Então nos surpreendemos com o quanto conseguimos nos enganar e por quanto tempo.

 Isadora Calderaro Soares


3 comentários:

  1. Cara, muito bom o texto. Gostei demais! bjs

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  2. Fico feliz que alguiém como tu, que escreves muito bem, tenhas gostado. Muito obrigada, João! =D

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  3. Nossa, Isadora, adorei teus textos, em particular esse!Virei leitora oficial do teu blog.Muito bom mesmo.bjus.

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